Sobre a importância do processo de dissociação e associação para os humanos

(Entrevista transcrita concedida à John Marshal da United Express Daily News – Texas – USA – 2009)  

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J.M. – Prof. Lugão, mais uma vez obrigado por conceder esta entrevista… Gostaria que o senhor explicasse o fato de muitas pessoas apresentarem duas faces ou formas de  comportamento, por exemplo, em público são de um jeito e em casa de outro.

Resp. – Bem, é sempre um prazer conversar com você, John. Quanto a tua indagação… É natural que uma pessoa mude seu comportamento conforme o contexto e a situação… Em casa tenho o hábito de ficar nu de vez em quando; na verdade quase todas as pessoas têm este comportamento. Não me refiro a ficar andando nu, como num campo de nudismo, mas a tirar a roupa, seja para tomar um banho, seja para se trocar.

Embora banho seja uma coisa, no mínimo sensorial, sanitária e socialmente séria (experimente ficar alguns dias sem banho!)  –  sei que você e os leitores devem estar pensando que eu poderia ser mais específico… Então, deixe-me dizer que tudo começa a partir da definição de personalidade.

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A personalidade é a combinação da herança genética (nosso temperamento) com as aprendizagens (caráter) que fazemos ao longo da vida. Logo, se você tem uma boa herança genética e um legado cultural rico (aprendizagem) provavelmente irás sentir mais facilidade diante dos desafios da vida. Ao contrário, se a tua herança genética contiver problemas, como em certas síndromes, e o teu mundo cultural for empobrecido você sofrerá e terá dificuldades para se desenvolver.

 

Estou explicando a base da personalidade humana, isto é, esta mistura de temperamento e caráter, agora devo acrescentar, para chegar na tua pergunta, que o psiquismo é formado por vários componentes, a parte física que chamamos de cérebro e as funções, como a memória, a consciência, a atenção, a percepção… O fato é que estas funções agem como programas, e exatamente como um computador, geram estratégias em relação a objetivos específicos. Se você tem sede ou fome teu organismo buscará uma estratégia para solucionar o problema… Entretanto, apesar de sermos animais fruto da evolução, como todos os animais, tivemos em função desta mesma evolução, estruturas cerebrais e aprendizagens muito específicas e diferenciadas. Podemos ter um impulso para saciar alguma necessidade biológica ou algum desejo psíquico ou cultural (o desejo é um componente motivacional que evoluiu das necessidades biológicas, possivelmente)… Então, de um lado você sente o impulso para pegar a comida mas o outro lado diz que você não pode pegar, tem que pagar por ela… O fato é que todos nós temos estratégias diferentes para situações diferentes, agimos de forma a nos adaptarmos aos diferentes contextos, mas de modo geral mantemos certos padrões estáveis; quando a diferença de comportamento entre um contexto e outro é muito grande, resta saber se o indivíduo tem consciência disto e age de forma intencional e integrada.

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JM. – O senhor quer dizer que há uma diferença se a pessoa tem consciência de estar agindo de duas maneiras distintas?

Resp. Sim, mas devo acrescentar que ter consciência não é um critério que defina uma linha entre o saudável e o patológico. O que se percebe é que é normal haver uma diferença de comportamento em resposta aos diferentes ambientes. O que se pergunta é: a identidade da pessoa está lá integrada, convivendo harmoniosamente com as suas várias partes, e por conseqüência com as estratégias geradas por estas partes?

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Peguemos algumas personalidades para ilustrar o argumento: Pelé, Dunga, Muhammad Ali-Haj  … Paula Poundstone e Michael Jackson!

paula_l Paula Poundstone

Cassius

JM. Embora a maioria dos citados seja conhecida do público, permita-me acrescentar uma breve apresentação… Pelé… O rei do futebol, Edson Arantes do Nascimento; Dunga, deve ser o treinador da atual seleção brasileira, e não um dos sete anões (risos)…

Resp. Correto (risos), o Sr. Carlos Caetano Bledorn Verri,  é o Dunga, técnico da seleção; este apelido, pelo que li, dado por um tio – Cláudio, se não me engano- que o percebia como propenso a não ter uma estatura muito elevada.

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 Dunga

JM. –  Tenho umas perguntas sobre ele para depois… Cassius Clay, o exímio boxer, é Mohamed Ali; após a perda do cinturão de campeão, nos anos 60, por se recusar a ir para o combate no Vietnã converteu-se ao Islamismo. Sobram Michael Joseph Jackson, o Joseph é o desconhecido da mídia (risos) e Paula Poundstone! E mais uma vez o senhor me surpreende ao citar uma comediante que nos EUA é conhecida mas não no Brasil…

Resp. De fato não a conheço da mídia mas sim de uma obra sobre teorias da personalidade… Assim como Michael Jackson teve que se explicar diante das acusações sobre a sua atividade sexual com menores de idade, Paula Poundstone, mãe adotiva de algumas crianças , também foi acusada de abuso sexual… Bem, estas duas pessoas apresentam comportamentos distintos; talvez  tivessem consciência das intenções de suas diferentes partes , embora não tivessem controle e quando as estratégias específicas eram acionadas elas embarcavam naquele rumo.

JM. Pode-se dizer que Pelé e Muhammad Ali são criações estratégicas do inconsciente de Edson Arantes e de Cassius Clay?

Resp. Criações estratégicas do inconsciente? (risos)… Apreciei John, você está pegando o jeito, soou bonito. Lembrou-me uma frase… A verdadeira amizade existe quando o silêncio entre duas pessoas se torna eloqüente… ( longa pausa – silêncio –  seguida de risos de ambos)

JM. Well, muito boa esta! Tem outra?

Resp. Gosto muito de uma que causa um efeito visual-cinestésico… “Os limites das irradiações da atividade intelectual de Martin Heidegger” que li nos Seminários de Zollikon de Medard Boss.

JM. Impressiona bastante, mas o que me diz de Pelé?

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Resp.  John, se você ouve o Edson Arantes falando sobre o Pelé e não conhece a história deles (risos), pensará que são duas pessoas, mas parece que foi uma estratégia dissociativa consciente que ele arrumou para se proteger na aposentadoria e/ou conservar a sua identidade longe do atleta-personagem, porque deve ser muito difícil para o Clark Kent acordar um dia e perceber que o Super-homem já era… Edson sabia que chegaria a hora em que o Pelé deixaria de existir antes dele e foi sábio neste sentido mantendo uma distância crítica entre o personagem e a pessoa.

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JM. Deve ser realmente duro acordar para um pesadelo como foi o de Christopher Reeves, ao cair do cavalo…

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Resp. Na verdade o super-homem e o Clark Kent são máscaras para sobreviver na Terra que o Kal-El adotou…  Assim como o Batman seria fruto de um trauma, o super-homem tem uma catástrofe em sua história de vida, catástrofe do tipo deste filme que vocês estão fazendo, 2012. Quanto à Christopher Reeves, muitos disseram, tentando resignificar, que ali ele demonstrou ser realmente o super-homem ao tentar superar sua condição.

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Embora estes sejam personagens o Distúrbio Dissociativo de Identidade (DDI), que antigamente chamava-se Personalidade Múltipla, nasce de traumas ocorridos na infância.

JM. Isto quer dizer que uma pessoa pode realmente criar personagens, heróis, devido a traumas de infância?

Resp. Todos, de nossa idade (risos) conhecemos o juramento da caveira contra a pirataria… A lenda do Fantasma. Na verdade, muitos profissionais nasceram de traumas… Lembro-me de ter lido sobre uma médica que fez a escolha da carreira ao ver um parente tendo um infarto. No caso do DDI os estados de ego criados também servem para tentar organizar a sobrevivência ao trauma porém não são tão sublimados e sublimes e por isto causam uma desorganização na personalidade da pessoa.

JM. Li que Carl Jung conversava com uma pedra quando era criança…

Resp. C. G. Jung, como várias crianças, construía personagens e diálogos e disto advinha sua criatividade e, acredito, sua capacidade de empatia, assim como a de todos nós. Ou seja, creio que a empatia vem, deste exercício de associar-se / dissociar-se. Os pseudônimos e heterônimos vêm deste processo de associação / dissociação. Muitos escritores usam este recurso, por exemplo, Fernando Pessoa era mestre neste tipo de processo, e não podemos esquecer da história Meu pé de Laranja Lima.

Na literatura há o clássico “O médico e o monstro”…

JM. Ah! Mr. Jekyll & Mr. Hide !

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Resp. Sim, Jerry Lewis e, mais recentemente, Ed Murphy, fizeram refilmagens desta obra clássica.

JM. Bem, para finalizar, o senhor vive em um país considerado mágico quando o assunto é futebol… Como sei, você próprio foi jogador de futebol indoor e ainda gosta de jogar…

Resp. Sim, ainda pratico para me exercitar e divertir, mas, e é difícil aceitar, as dores de artroses e artrites limitam muito…

JM. Bem, o que acha disto que a Imprensa tem comentado sobre o caráter do atual técnico … Um homem metódico e que tem um gênio difícil…

Resp. Bem, não conheço pessoalmente o homem,  porém sei de muitas distorções e pressões que os homens públicos sofrem… Talvez ele esteja apenas reagindo… Como é gaúcho deve ter ascendência alemã ou italiana, donde este é um tipo de perfil que em geral trabalha sério e se diverte somente depois que a casa de tijolos está firme e o perigo já passou.

JM. Muito obrigado professor.

Resp. Foi um prazer.

 

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Meu pé de laranja lima  é um romance juvenil, escrito por José Mauro de Vasconcellos e publicado em 1968.

Foi traduzido para 32 línguas e publicado em 19 países. Foi adotado em escolas e, posteriormente, adaptado para o cinematelevisão e teatro.

Em 2003Meu pé de laranja lima foi publicado na Coréia, em forma de quadrinhos, numa bem cuidada edição com 224 páginas ilustradas.

Em 2009, no seu 27º encontro, a Reinações (confraria da leitura de textos infanto-juvenis) debateu o livro Meu pé de laranja lima, destacando a ternura presente no livro e o espaço mágico em que a árvore acaba se revelando não apenas um amigo de Zezé, mas uma espécie de refúgio para o tanto de sofrimento que a vida lhe impôs. Os encontros ocorreram em Caxias do Sul.

Meu pé de laranja lima – Enredo

Este livro retrata a história de um menino de cinco anos chamado Zezé, que pertencia a uma família muito pobre e muito numerosa. Zezé tinha muitos irmãos, a sua mãe trabalhava numa fábrica, o pai estava desempregado, e como tal passavam por muitas dificuldades, pelo que eram as irmãs mais velhas que tomavam conta dos mais novos; por sua vez, Zezé tomava conta do seu irmãozinho mais novo, Luís.

Zezé era um rapazinho muito interessado pela vida, adorava saber e aprender coisas novas, novas palavras, palavras difíceis que o seu tio lhe ensinava. Contudo, passava a vida a fazer traquinices pela rua, a pregar peças aos outros e muitas vezes acabava por ser castigado e repreendido pelos pais ou pelos irmãos, que passavam a vida a dizer que era um mau menino, sempre a fazer maldades. Todos estes fatores e o fato de não passar muito tempo com a mãe, visto que esta trabalhava muito, faziam com que Zezé, muitas vezes, não encontrasse na família o carinho e a ternura que qualquer criança precisa.

Ao mudarem de casa, Zezé encontra no quintal da sua nova moradia um pequeno pé de laranja lima, inicialmente a idéia de ter uma árvore tão pequena não lhe agrada muito, mas à medida que este vai convivendo com a pequena árvore e ao desabafar com esta, repara que ela fala e que é capaz de conversar consigo, tornando-se assim o seu grande amigo e confidente, aquele que lhe dava todo o carinho que Zezé não recebia em casa da sua família.

 

 

Sobre Fernando Pessoa  Fernando Pessoa


O crítico George Steiner situa Fernando Pessoa entre os mestres da modernidade 
em artigo que inicia o leitor de língua inglesa na obra do poeta e seus três heterônimos                     

     É raro um país e uma língua adquirirem quatro grandes poetas em um dia. Foi 
precisamente o que ocorreu em Lisboa a 8 de março de 1914. 

     Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu naquela capital provinciana e algo 
lúgubre a 13 de junho de 1888. O Exército, o serviço público e a música figuravam no 
passado da família. Já em janeiro de 1894, após a morte do pai e do irmão caçula, Pessoa começou a inventar “heterônimos” — “personas” imaginárias para povoar um “teatro íntimo do eu”. O garoto de seis anos trocava cartas com um correspondente fictício. Sua mãe casou-se novamente, e a família mudou-se para Durban, África do Sul. No Natal veio à luz um certo Alexander Search, invenção para quem Pessoa criou uma biografia, traçou o horóscopo e em cujo nome calmamente translúcido escreveu poesia e prosa em língua inglesa. Seguir-se-iam outros 72 personagens em busca de um autor. De início, eles tendiam a escrever na esteira de Shelley e Keats, de Carlyle, Tennyson e Browning. 

     Em 1905, o jovem empresário de “eus” retornou a Lisboa.

Logo abandonou a Fernando Pessoa 2
universidade e tornou-se autodidata. No restante de sua vida, Pessoa escolheu uma renda módica, em empregos de meio período. Serviu como correspondente de comércio estrangeiro, traduzindo e compondo cartas em inglês e francês. De vez e quando, traduzia uma antologia literária. Essa existência marginal e autônoma vincula Pessoa a outros mestres da modernidade urbana, como James Joyce, Ítalo Svevo (Trieste e Lisboa partilham uma vívida fantasmagoria) e, de certo modo, Franz Kafka. 

     Até 1909, a poesia imputada a Alexander Search permanece em inglês, à exceção de seis sonetos portugueses. O ano de 1912 marcou uma reviravolta. Pessoa envolveu-se nos incontáveis círculos, conventículos e publicações efêmeras de cunho 
lítero-estético-político-moral que surgiram da crescente crise social portuguesa. (77 mil habitantes emigraram só naquele ano). A vida íntima de Pessoa — a alternância entre o mundo dos cafés lisboetas e o isolamento radical — encontrou expressão num secreto “Livro do Desassossego” e no primeiro rascunho de um longo poema inglês. A fissão em incandescência quadri-partida teve lugar naquele dia de março de 1914. Até hoje ele permanece um dos fenômenos mais notáveis da história da literatura. Ao rememorar o fato (numa carta de 1935), Pessoa fala de um “êxtase cuja natureza não conseguirei definir (…) aparecera em mim o meu mestre”. 

     Alberto Caeiro escreveu 30 e tantos poemas a toque de caixa. A estes se seguiram, “imediatamente e totalmente”, seis poemas de Fernando Pessoa ele só. Mas Caeiro não saltara à existência sozinho. Viera acompanhado de dois discípulos principais. Um era Ricardo Reis; o outro: “De repente, em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem. Criei, então, uma “coterie” inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa”. 

     Pseudônimos, “noms de plume”, anonimato e toda forma de máscara retórica são tão velhos quanto a literatura. Os motivos são muitos. Eles se estendem desde a escrita política clandestina à pornografia, desde o ofuscamento brincalhão a sérios distúrbios de personalidade. O “companheiro secreto” (íntimo de Conrad), o “duplo” prestativo ou ameaçador, é um motivo recorrente — veja-se Dostoiévski, Robert Louis Stevenson e Borges. Assim também é o tema — antigo como a rapsódia homérica — da poesia “tomada sob ditado”, sob o assalto literal e imediato das Musas, ou seja, das vozes divinas ou dos finados. 

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Nesse sentido de “inspiração”, de “ser escrito em vez de escrever”, as técnicas de escrita automática antecedem em muito o surrealismo. Muitos dos grandes escritores voltaram-se abertamente contra si próprios, contra sua obra ou seu estilo anteriores, a ponto de buscar sua destruição. A multiplicidade, o ego convertido em legião, pode ser festiva, como em Whitinan, ou sombriamente auto-irônica, como em Kierkegaard. 

     Há disfarces e paródias que a erudição mais minuciosa jamais penetrou. Simenon era incapaz de recordar quantos romances criara ou sob quais antigos e múltiplos pseudônimos. Em idade avançada, o pintor De Chirico prorrompia em museus e galerias de arte declarando falsos os prestigiosos quadros que havia muito lhe eram atribuídos. Agiu assim porque passou a antipatizá-los ou porque não podia mais identificar sua própria mão? Como proclamou Rimbaud, em sua renovação da modernidade, “Eu é um outro”. 

     Entretanto o caso de Pessoa permanece sui generis. Ele não tem nenhum paralelo próximo, não apenas por causa de sua estrutura quadri-partida, mas também por diferenças mercantes entre suas quatro vozes. Cada uma tem sua própria biografia e físico detalhados. Caeiro é loiro, pálido e de olhos azuis; Reis é de um vago moreno mate; e “Campos, entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo”, como nos diz Pessoa. Caeiro quase não dispôs de educação e vive de pequenos rendimentos. Reis, educado num colégio de jesuítas, é um médico auto-exilado no Brasil desde 1919, por convicções monárquicas. Campos é engenheiro naval e latinista.  

     O inter-relacionamento dos três, seja na atitude ou no estilo literário, é de uma densidade e sutileza jamesianas, a exemplo de seus vários laços de parentesco com o próprio Pessoa. O Caeiro em Pessoa faz poesia por pura e inesperada inspiração. A obra de Ricardo Reis é fruto de uma deliberação abstrata, quase analítica. As afinidades com Campos são as mais nebulosas e intricadas. “É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu, menos o raciocínio e a afetividade”. 

     A língua de Campos é bastante parecida à de Pessoa; Caeiro escreve um português descuidado, por vezes com lapsos; Reis é um purista cujo linguajar Pessoa considera exagerado. 

     O labirinto é explorado na introdução de Octavio Paz a “A Centenary Pessoa” (“Um Pessoa Centenário”), uma antologia com bela produção editada por Eugênio Lisboa e L. C. Taylor. Paz vê Caeiro, Reis e Campos como “os protagonistas de um romance que Pessoa jamais escreveu”. Pessoa não é entretanto “um inventor de poetas-personagens, mas um criador de obras de poetas”, argumenta Paz. “A diferença é crucial”. As biografias imaginárias, as anedotas, o “realismo mágico” do contexto histórico-político-social em que cada máscara se desenvolve são um acompanhamento, uma elucidação para os textos. O enigma da autonomia de Reis e Campos é tal que, vez por outra, eles chegam a tratar Pessoa com ironia ou condescendência. Caeiro, por sua vez, é, como vimos, o mestre cuja brusca autoridade e salto para a vida generativa desencadeiam todo o projeto dramático. Paz distingue com acurácia estes fantasmas animados. 

     Caeiro é um agnóstico que deseja anular a morte por negar a consciência. Sua 
postura é de um paganismo existencial. Há em seus textos e sua “persona” retoques de quietude e sagacidade orientais. Sua fraqueza, sugere Paz, é a qualidade esfumada da experiência que alega encarnar. Ele morre jovem. Como Caeiro, Campos pratica versos livres e lida de modo irreverente com o português clássico ou castiço. Ambos são pessimistas, apaixonados pela realidade concreta. Mas Caeiro é um ingênuo que cultiva a abstinência e o retraimento filosóficos, ao passo que Campos é um dândi peregrino. 

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     De novo,é Paz quem formula de modo incisivo:”Caeiro pergunta-se : o que sou? 
Campos: quem sou?”. Para Campos, essa questão é quase abafada pelo clamor da máquina, pelo bramido da nova tecnologia na fábrica e nas ruas da metrópole moderna. Partindo da premissa de que a única realidade é a sensação, Campos acabará por se perguntar se ele próprio é real (uma modulação irônica, em vista de seu primeiro e mais celebrado poema, a “Ode Triunfal”). 

     Ricardo Reis é o mais complexo destes disfarces. Anacoreta, ele privilegia os 
gêneros neoclássicos altamente elaborados, como o epigrama, a elegia e a ode. Raríssima mescla de esteta estóico (um eco talvez de Walter Pater?), a perfeição técnica de seus poemas curtos busca a tranqüila resignação ao destino. Pessoa chama atenção para as obras não publicadas de Reis; elas incluem “Um Debate Estético entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos” e notas críticas sobre Caeiro e Campos, qualificadas por Pessoa como “modelos de precisão verbal e equívoco estético”. (Tão encantadoramente tortuosos são o dédalo e o quarto de espelhos de Pessoa que mesmo um Borges ou um Paz, ambos mestres em labirintos, parecem simples em comparação). E a respeito do titereiro ele próprio (apesar dessa comparação grosseira)? 

     Paz o imagina como essencialmente ausente: “Ele nunca aparecerá: não há um outro. O que aparece insinua a si próprio sua alteridade, que não tem nome, que não é dito e nossas pobres palavras invocam. Isto é poesia? Não: poesia é o que resta e nos consola, a consciência das ausências. E, mais uma vez, quase imperceptivelmente, um rumor de algo. Pessoa ou a iminência do desconhecido”. 

     A silhueta que Paz traça de Pessoa, sendo palavras de despedida tão sutis, correm o risco de obscurecer um fato básico. Do jogo espectral dos heterônimos emerge uma poesia com força de primeira grandeza. Pessoa é com justiça arrolado entre as 26 figuras centrais do sugestivo, embora um tanto pueril, “Cânone Ocidental” (de Harold Bloom).

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     O português é uma língua resistente. Suas guturais o fazem como que o membro eslavo da família das línguas românicas. Na ausência, ademais, de uma tradução adequada para, o inglês dos “Lusíadas”, de Camões, essa grande epopéia de um império trágico e conquistador, para a maioria de nós a literatura portuguesa (que inclui, naturalmente, a do Brasil) permanece estranha. 

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     Somos por isso gratos às traduções e seleções de nosso quarteto a cargo de Keith Bosley. Primeiro, a voz de Pessoa: “Não sei quem me sonho…”; “Ditosos a quem acena/ Um lenço de despedida!” ; “Dá a surpresa de ser”. Ou o característico “O mais do que isto/ É Jesus Cristo,/ Que não sabia nada de finanças/ Nem consta que tivesse biblioteca…” Há este registro irônico e incerto, com seu constante apelo ao mar, a um Portugal quase liberto de suas amarras européias:  

                                        “Ó mar salgado, quanto do teu sal  
                                        São lágrimas de Portugal! 
                                        Por te cruzarmos, quantas mães choraram, 
                                        Quantos filhos em vão rezaram! 
                                        Quantas noivas ficaram por casar 
                                        Para que fosses nosso, ó mar! 
                                        Valeu a pena?  Tudo vale a pena 
                                        Se a alma não é pequena. 
                                        Quem quer passar além do Bojador 
                                        Tem que passar além da dor. 
                                        Deus ao mar o perigo e o abismo deu, 
                                        Mas nele é que espelhou o céu”. 

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     Ouvimos a seguir a sensualidade filosófica de Caeiro: 

                                        “Não me importo com às rimas. Raras vezes 
                                        Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra. 
                                        Penso e escrevo como as flores têm cor 
                                        Mas com menos perfeição no meu modo de  
                                        exprimir-me  
                                        Porque me falta a simplicidade divina  
                                        De ser todo só o meu exterior”.  

     Há laconismos inesquecíveis (uma distante melodia de Emily Dickinson): “Li hoje quase duas páginas/ Do livro dum poeta místico,/ E ri como quem tem chorado muito”. 
Caeiro saúda o transitório. Para ele a “recordação é uma traição à Natureza”, já que ela muda constantemente. Ele ordena aos, pássaros em vôo que lhe ensinem a arte de passar sem deixar rastro. A busca da individualidade, de verdades absolutas — o modelo platônico tão peremptório na poesia ocidental — é meramente “uma doença das nossas idéias”. Suas reflexões sobre a morte e a posteridade são dotadas de um orgulho agridoce pois ele foi “gentil como o sol e a água” e, por fim, veio-lhe o “sono como a qualquer criança”. 

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     Absolutamente diverso é Ricardo Reis: rato de biblioteca, entendido em mitologia antiga, perito em formas métricas elaboradas e estilo mandarim. De certo modo, uma versão mais austera de Swinburne e Gautier, de ouvidos atentos e imitando “O ritmo antigo que há em pés descalços,/ Esse ritmo das ninfas repetido”. Um esteta “fin de siècle” que prefere “rosas à pátria” e vê em Cristo não “mais que um deus a mais no eterno”. Todavia um poeta lírico capaz desta rara mordacidade epigramática que conhecemos também de Walter Savage Landor (talvez o verdadeiro modelo de Reis): 

                                        “Quando, Lídia, vier o nosso outono 
                                        Com o inverno que há nele, 
                                        Preservemos 
                                        Um pensamento, não para a futura 
                                        Primavera, que é de outrem, 
                                        Nem para o estio, de quem somos mortos, 
                                        Senão para o que fica do que passa — 
                                        O amarelo atual que as folhas vivem 
                                        E as torna diferentes”. 

     Campos é o retórico loquaz, o bardo à maneira clássica. É capaz porém de ridicularizar-se com ousada satisfação. Sua “Ode Triunfal” pode ser equiparada a “A Ponte”, de Hart Crane, como um dos textos-chave das paisagens industriais da modernidade. “Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hó la foule!” Como o ranzinza e fantasmagórico Pessoa deve ter refugido da robusta democracia de Campos! Como Reis, o alusivo helenista vitoriano, deve ter-se esquivado!  

                                        “Ah, e agente ordinária e suja, 
                                        que parece sempre a mesma,  
                                        Que emprega palavrões como palavras usuais,  
                                        Cujos filhos roubam às portas das mercearias  
                                        E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e             
                                       amo-o! 
                                        Masturbam homens de aspecto  
                                        decente nos vãos da escada.”  

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     “Tabacaria” consta entre os mais prestigiados poemas da língua. Não é cinismo,mas antes uma espécie de revigorante desalento que ordena à pequena garota “comer chocolates”, pois “que não há mais metafísica no mundo senão chocolates”, após o que o poeta deita o papel laminado “para o chão, como tenho deitado a vida”. E já que “toda gente sabe como as grandes constipações/ Alteram todo o sistema do universo/ 
Zangam-nos contra a vida,/ E fazem espirrar até à metafísica”, o poeta receita um único remédio: “Preciso de verdade e da aspirina”. Hazlitt fala com reverência de uma sensibilidade capaz de imaginar e dar articulação a um lago e a uma Cordélia. A simples amplitude de vozes e temperamentos alternados de Pessoa dificilmente é menos admirável. 

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Essa homenagem centenária elegantemente ilustrada oferece passagens representativas da prosa de Pessoa acrescidas de críticas, perfis e documentos. Omitido porém foi o leviatânico drama filosófico “Fausto”. Pessoa começou a trabalhar nesta suma em 1908 e — em analogia a Goethe — continuou a elaborá-lo até 1933. Há críticos, notadamente na França, que o tomam por uma obra-chave, um arquipélago ainda a ser descoberto.  

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                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            Os editores incluíram duas imaginárias entrevistas póstumas, mas o supra-sumo nessa veia parece que lhes passou despercebido: “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José Saramago, traduzido para o inglês em 1991 por Giovanni Pontiero, está entre os melhores romances da recente literatura européia. o livro fala do regresso de Ricardo Reis de seu exílio no Brasil, de Eros e fascismo em Lisboa e do encontro entre Reis e seu genitor morto. Nada mais perceptivo foi escrito sobre Pessoa e suas sombras contrastantes. Nas palavras de Fernando Pessoa: 

 

                                      “Se as coisas são estilhaços 
                                        Do saber do universo, 
                                        Seja eu os meus pedaços, 
                                        Impreciso e diverso. 
                                        Eles foram e não foram”. 
   

  (in Folha de São Paulo, Caderno Mais!)
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Por Celso Lugão

Especializações em PSICOLOGIA CLÍNICA E HOSPITALAR. Exerce ATIVIDADE CLÍNICA fazem mais de 30 anos, tendo criado sua abordagem particular de PSICOTERAPIA ESTRATÉGICA. Possui MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL PELA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Atualmente é professor do INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UERJ tendo criado o setor de PSICOTERAPIA ESTRATÉGICA NO SPA DA UERJ EM 1988 e desde então atua como SUPERVISOR desta abordagem. Participou de forma intensiva do PROCESSO DE VALIDAÇÃO DA HIPNOSE como TÉCNICA PASSÍVEL DE SER UTILIZADA PELO PSICÓLOGO, fato este reconhecido pela SOCIEDADE BRASILEIRA DE HIPNOSE e pela SOCIEDADE DE HIPNOSE E MEDICINA DO RIO DE JANEIRO. Possui experiência em várias áreas da psicologia, a saber: EPISTEMOLOGIA DAS PSICOTERAPIAS (DESENVOLVIMENTO DE REFERENCIAIS EPISTEMOLÓGICOS E CLÍNICOS; ESTUDO DAS PERSPECTIVAS ESTRATÉGICA, ESTRUTURAL E SISTÊMICA EM RELAÇÃO AO INDIVÍDUO E A FAMÍLIA) ; PSICOLOGIA CLÍNICA E HIPNOLOGIA (TRANSDUÇÃO DA INFORMAÇÃO MENTE-CORPO, PSICOIMUNOLOGIA, TÉCNICAS HIPNÓTICAS, CORPORAIS, PSICODRAMÁTICAS E ESTADOS ALTERADOS DA CONSCIÊNCIA); TANATOLOGIA (MORTE, LUTO E SEPARAÇÕES); PROCESSOS DISSOCIATIVOS (TRAUMA, DISTÚRBIO DISSOCIATIVO DA IDENTIDADE, SÍNDROME DO STRESS PÓS-TRAUMÁTICO, SÍNDROME DO PÂNICO, SUICÍDIO, DROGADICÇÃO, PSICOSES); E ASPECTOS PEDAGÓGICOS DA SUPERVISÃO (TREINAMENTO, INFORMAÇÃO E FORMAÇÃO ). (Text informed by the author)

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