(Entrevista transcrita concedida à John Marshal da United Express Daily News – Texas – USA – 2009)
J.M. – Prof. Lugão, mais uma vez obrigado por conceder esta entrevista… Gostaria que o senhor explicasse o fato de muitas pessoas apresentarem duas faces ou formas de comportamento, por exemplo, em público são de um jeito e em casa de outro.
Resp. – Bem, é sempre um prazer conversar com você, John. Quanto a tua indagação… É natural que uma pessoa mude seu comportamento conforme o contexto e a situação… Em casa tenho o hábito de ficar nu de vez em quando; na verdade quase todas as pessoas têm este comportamento. Não me refiro a ficar andando nu, como num campo de nudismo, mas a tirar a roupa, seja para tomar um banho, seja para se trocar.
Embora banho seja uma coisa, no mínimo sensorial, sanitária e socialmente séria (experimente ficar alguns dias sem banho!) – sei que você e os leitores devem estar pensando que eu poderia ser mais específico… Então, deixe-me dizer que tudo começa a partir da definição de personalidade.
A personalidade é a combinação da herança genética (nosso temperamento) com as aprendizagens (caráter) que fazemos ao longo da vida. Logo, se você tem uma boa herança genética e um legado cultural rico (aprendizagem) provavelmente irás sentir mais facilidade diante dos desafios da vida. Ao contrário, se a tua herança genética contiver problemas, como em certas síndromes, e o teu mundo cultural for empobrecido você sofrerá e terá dificuldades para se desenvolver.
Estou explicando a base da personalidade humana, isto é, esta mistura de temperamento e caráter, agora devo acrescentar, para chegar na tua pergunta, que o psiquismo é formado por vários componentes, a parte física que chamamos de cérebro e as funções, como a memória, a consciência, a atenção, a percepção… O fato é que estas funções agem como programas, e exatamente como um computador, geram estratégias em relação a objetivos específicos. Se você tem sede ou fome teu organismo buscará uma estratégia para solucionar o problema… Entretanto, apesar de sermos animais fruto da evolução, como todos os animais, tivemos em função desta mesma evolução, estruturas cerebrais e aprendizagens muito específicas e diferenciadas. Podemos ter um impulso para saciar alguma necessidade biológica ou algum desejo psíquico ou cultural (o desejo é um componente motivacional que evoluiu das necessidades biológicas, possivelmente)… Então, de um lado você sente o impulso para pegar a comida mas o outro lado diz que você não pode pegar, tem que pagar por ela… O fato é que todos nós temos estratégias diferentes para situações diferentes, agimos de forma a nos adaptarmos aos diferentes contextos, mas de modo geral mantemos certos padrões estáveis; quando a diferença de comportamento entre um contexto e outro é muito grande, resta saber se o indivíduo tem consciência disto e age de forma intencional e integrada.
JM. – O senhor quer dizer que há uma diferença se a pessoa tem consciência de estar agindo de duas maneiras distintas?
Resp. Sim, mas devo acrescentar que ter consciência não é um critério que defina uma linha entre o saudável e o patológico. O que se percebe é que é normal haver uma diferença de comportamento em resposta aos diferentes ambientes. O que se pergunta é: a identidade da pessoa está lá integrada, convivendo harmoniosamente com as suas várias partes, e por conseqüência com as estratégias geradas por estas partes?
Peguemos algumas personalidades para ilustrar o argumento: Pelé, Dunga, Muhammad Ali-Haj … Paula Poundstone e Michael Jackson!
Paula Poundstone
JM. Embora a maioria dos citados seja conhecida do público, permita-me acrescentar uma breve apresentação… Pelé… O rei do futebol, Edson Arantes do Nascimento; Dunga, deve ser o treinador da atual seleção brasileira, e não um dos sete anões (risos)…
Resp. Correto (risos), o Sr. Carlos Caetano Bledorn Verri, é o Dunga, técnico da seleção; este apelido, pelo que li, dado por um tio – Cláudio, se não me engano- que o percebia como propenso a não ter uma estatura muito elevada.
JM. – Tenho umas perguntas sobre ele para depois… Cassius Clay, o exímio boxer, é Mohamed Ali; após a perda do cinturão de campeão, nos anos 60, por se recusar a ir para o combate no Vietnã converteu-se ao Islamismo. Sobram Michael Joseph Jackson, o Joseph é o desconhecido da mídia (risos) e Paula Poundstone! E mais uma vez o senhor me surpreende ao citar uma comediante que nos EUA é conhecida mas não no Brasil…
Resp. De fato não a conheço da mídia mas sim de uma obra sobre teorias da personalidade… Assim como Michael Jackson teve que se explicar diante das acusações sobre a sua atividade sexual com menores de idade, Paula Poundstone, mãe adotiva de algumas crianças , também foi acusada de abuso sexual… Bem, estas duas pessoas apresentam comportamentos distintos; talvez tivessem consciência das intenções de suas diferentes partes , embora não tivessem controle e quando as estratégias específicas eram acionadas elas embarcavam naquele rumo.
JM. Pode-se dizer que Pelé e Muhammad Ali são criações estratégicas do inconsciente de Edson Arantes e de Cassius Clay?
Resp. Criações estratégicas do inconsciente? (risos)… Apreciei John, você está pegando o jeito, soou bonito. Lembrou-me uma frase… A verdadeira amizade existe quando o silêncio entre duas pessoas se torna eloqüente… ( longa pausa – silêncio – seguida de risos de ambos)
JM. Well, muito boa esta! Tem outra?
Resp. Gosto muito de uma que causa um efeito visual-cinestésico… “Os limites das irradiações da atividade intelectual de Martin Heidegger” que li nos Seminários de Zollikon de Medard Boss.
JM. Impressiona bastante, mas o que me diz de Pelé?
Resp. John, se você ouve o Edson Arantes falando sobre o Pelé e não conhece a história deles (risos), pensará que são duas pessoas, mas parece que foi uma estratégia dissociativa consciente que ele arrumou para se proteger na aposentadoria e/ou conservar a sua identidade longe do atleta-personagem, porque deve ser muito difícil para o Clark Kent acordar um dia e perceber que o Super-homem já era… Edson sabia que chegaria a hora em que o Pelé deixaria de existir antes dele e foi sábio neste sentido mantendo uma distância crítica entre o personagem e a pessoa.
JM. Deve ser realmente duro acordar para um pesadelo como foi o de Christopher Reeves, ao cair do cavalo…
Resp. Na verdade o super-homem e o Clark Kent são máscaras para sobreviver na Terra que o Kal-El adotou… Assim como o Batman seria fruto de um trauma, o super-homem tem uma catástrofe em sua história de vida, catástrofe do tipo deste filme que vocês estão fazendo, 2012. Quanto à Christopher Reeves, muitos disseram, tentando resignificar, que ali ele demonstrou ser realmente o super-homem ao tentar superar sua condição.
Embora estes sejam personagens o Distúrbio Dissociativo de Identidade (DDI), que antigamente chamava-se Personalidade Múltipla, nasce de traumas ocorridos na infância.
JM. Isto quer dizer que uma pessoa pode realmente criar personagens, heróis, devido a traumas de infância?
Resp. Todos, de nossa idade (risos) conhecemos o juramento da caveira contra a pirataria… A lenda do Fantasma. Na verdade, muitos profissionais nasceram de traumas… Lembro-me de ter lido sobre uma médica que fez a escolha da carreira ao ver um parente tendo um infarto. No caso do DDI os estados de ego criados também servem para tentar organizar a sobrevivência ao trauma porém não são tão sublimados e sublimes e por isto causam uma desorganização na personalidade da pessoa.
JM. Li que Carl Jung conversava com uma pedra quando era criança…
Resp. C. G. Jung, como várias crianças, construía personagens e diálogos e disto advinha sua criatividade e, acredito, sua capacidade de empatia, assim como a de todos nós. Ou seja, creio que a empatia vem, deste exercício de associar-se / dissociar-se. Os pseudônimos e heterônimos vêm deste processo de associação / dissociação. Muitos escritores usam este recurso, por exemplo, Fernando Pessoa era mestre neste tipo de processo, e não podemos esquecer da história Meu pé de Laranja Lima.
Na literatura há o clássico “O médico e o monstro”…
JM. Ah! Mr. Jekyll & Mr. Hide !
Resp. Sim, Jerry Lewis e, mais recentemente, Ed Murphy, fizeram refilmagens desta obra clássica.
JM. Bem, para finalizar, o senhor vive em um país considerado mágico quando o assunto é futebol… Como sei, você próprio foi jogador de futebol indoor e ainda gosta de jogar…
Resp. Sim, ainda pratico para me exercitar e divertir, mas, e é difícil aceitar, as dores de artroses e artrites limitam muito…
JM. Bem, o que acha disto que a Imprensa tem comentado sobre o caráter do atual técnico … Um homem metódico e que tem um gênio difícil…
Resp. Bem, não conheço pessoalmente o homem, porém sei de muitas distorções e pressões que os homens públicos sofrem… Talvez ele esteja apenas reagindo… Como é gaúcho deve ter ascendência alemã ou italiana, donde este é um tipo de perfil que em geral trabalha sério e se diverte somente depois que a casa de tijolos está firme e o perigo já passou.
JM. Muito obrigado professor.
Resp. Foi um prazer.
Meu pé de laranja lima é um romance juvenil, escrito por José Mauro de Vasconcellos e publicado em 1968.
Foi traduzido para 32 línguas e publicado em 19 países. Foi adotado em escolas e, posteriormente, adaptado para o cinema, televisão e teatro.
Em 2003, Meu pé de laranja lima foi publicado na Coréia, em forma de quadrinhos, numa bem cuidada edição com 224 páginas ilustradas.
Em 2009, no seu 27º encontro, a Reinações (confraria da leitura de textos infanto-juvenis) debateu o livro Meu pé de laranja lima, destacando a ternura presente no livro e o espaço mágico em que a árvore acaba se revelando não apenas um amigo de Zezé, mas uma espécie de refúgio para o tanto de sofrimento que a vida lhe impôs. Os encontros ocorreram em Caxias do Sul.
Meu pé de laranja lima – Enredo
Este livro retrata a história de um menino de cinco anos chamado Zezé, que pertencia a uma família muito pobre e muito numerosa. Zezé tinha muitos irmãos, a sua mãe trabalhava numa fábrica, o pai estava desempregado, e como tal passavam por muitas dificuldades, pelo que eram as irmãs mais velhas que tomavam conta dos mais novos; por sua vez, Zezé tomava conta do seu irmãozinho mais novo, Luís.
Zezé era um rapazinho muito interessado pela vida, adorava saber e aprender coisas novas, novas palavras, palavras difíceis que o seu tio lhe ensinava. Contudo, passava a vida a fazer traquinices pela rua, a pregar peças aos outros e muitas vezes acabava por ser castigado e repreendido pelos pais ou pelos irmãos, que passavam a vida a dizer que era um mau menino, sempre a fazer maldades. Todos estes fatores e o fato de não passar muito tempo com a mãe, visto que esta trabalhava muito, faziam com que Zezé, muitas vezes, não encontrasse na família o carinho e a ternura que qualquer criança precisa.
Ao mudarem de casa, Zezé encontra no quintal da sua nova moradia um pequeno pé de laranja lima, inicialmente a idéia de ter uma árvore tão pequena não lhe agrada muito, mas à medida que este vai convivendo com a pequena árvore e ao desabafar com esta, repara que ela fala e que é capaz de conversar consigo, tornando-se assim o seu grande amigo e confidente, aquele que lhe dava todo o carinho que Zezé não recebia em casa da sua família.
Sobre Fernando Pessoa
em artigo que inicia o leitor de língua inglesa na obra do poeta e seus três heterônimos
É raro um país e uma língua adquirirem quatro grandes poetas em um dia. Foi
precisamente o que ocorreu em Lisboa a 8 de março de 1914.
Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu naquela capital provinciana e algo
lúgubre a 13 de junho de 1888. O Exército, o serviço público e a música figuravam no
passado da família. Já em janeiro de 1894, após a morte do pai e do irmão caçula, Pessoa começou a inventar “heterônimos” — “personas” imaginárias para povoar um “teatro íntimo do eu”. O garoto de seis anos trocava cartas com um correspondente fictício. Sua mãe casou-se novamente, e a família mudou-se para Durban, África do Sul. No Natal veio à luz um certo Alexander Search, invenção para quem Pessoa criou uma biografia, traçou o horóscopo e em cujo nome calmamente translúcido escreveu poesia e prosa em língua inglesa. Seguir-se-iam outros 72 personagens em busca de um autor. De início, eles tendiam a escrever na esteira de Shelley e Keats, de Carlyle, Tennyson e Browning.
Em 1905, o jovem empresário de “eus” retornou a Lisboa.
Logo abandonou a
universidade e tornou-se autodidata. No restante de sua vida, Pessoa escolheu uma renda módica, em empregos de meio período. Serviu como correspondente de comércio estrangeiro, traduzindo e compondo cartas em inglês e francês. De vez e quando, traduzia uma antologia literária. Essa existência marginal e autônoma vincula Pessoa a outros mestres da modernidade urbana, como James Joyce, Ítalo Svevo (Trieste e Lisboa partilham uma vívida fantasmagoria) e, de certo modo, Franz Kafka.
Até 1909, a poesia imputada a Alexander Search permanece em inglês, à exceção de seis sonetos portugueses. O ano de 1912 marcou uma reviravolta. Pessoa envolveu-se nos incontáveis círculos, conventículos e publicações efêmeras de cunho
lítero-estético-político-moral que surgiram da crescente crise social portuguesa. (77 mil habitantes emigraram só naquele ano). A vida íntima de Pessoa — a alternância entre o mundo dos cafés lisboetas e o isolamento radical — encontrou expressão num secreto “Livro do Desassossego” e no primeiro rascunho de um longo poema inglês. A fissão em incandescência quadri-partida teve lugar naquele dia de março de 1914. Até hoje ele permanece um dos fenômenos mais notáveis da história da literatura. Ao rememorar o fato (numa carta de 1935), Pessoa fala de um “êxtase cuja natureza não conseguirei definir (…) aparecera em mim o meu mestre”.
Alberto Caeiro escreveu 30 e tantos poemas a toque de caixa. A estes se seguiram, “imediatamente e totalmente”, seis poemas de Fernando Pessoa ele só. Mas Caeiro não saltara à existência sozinho. Viera acompanhado de dois discípulos principais. Um era Ricardo Reis; o outro: “De repente, em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem. Criei, então, uma “coterie” inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa”.
Pseudônimos, “noms de plume”, anonimato e toda forma de máscara retórica são tão velhos quanto a literatura. Os motivos são muitos. Eles se estendem desde a escrita política clandestina à pornografia, desde o ofuscamento brincalhão a sérios distúrbios de personalidade. O “companheiro secreto” (íntimo de Conrad), o “duplo” prestativo ou ameaçador, é um motivo recorrente — veja-se Dostoiévski, Robert Louis Stevenson e Borges. Assim também é o tema — antigo como a rapsódia homérica — da poesia “tomada sob ditado”, sob o assalto literal e imediato das Musas, ou seja, das vozes divinas ou dos finados.
Nesse sentido de “inspiração”, de “ser escrito em vez de escrever”, as técnicas de escrita automática antecedem em muito o surrealismo. Muitos dos grandes escritores voltaram-se abertamente contra si próprios, contra sua obra ou seu estilo anteriores, a ponto de buscar sua destruição. A multiplicidade, o ego convertido em legião, pode ser festiva, como em Whitinan, ou sombriamente auto-irônica, como em Kierkegaard.
Há disfarces e paródias que a erudição mais minuciosa jamais penetrou. Simenon era incapaz de recordar quantos romances criara ou sob quais antigos e múltiplos pseudônimos. Em idade avançada, o pintor De Chirico prorrompia em museus e galerias de arte declarando falsos os prestigiosos quadros que havia muito lhe eram atribuídos. Agiu assim porque passou a antipatizá-los ou porque não podia mais identificar sua própria mão? Como proclamou Rimbaud, em sua renovação da modernidade, “Eu é um outro”.
Entretanto o caso de Pessoa permanece sui generis. Ele não tem nenhum paralelo próximo, não apenas por causa de sua estrutura quadri-partida, mas também por diferenças mercantes entre suas quatro vozes. Cada uma tem sua própria biografia e físico detalhados. Caeiro é loiro, pálido e de olhos azuis; Reis é de um vago moreno mate; e “Campos, entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo”, como nos diz Pessoa. Caeiro quase não dispôs de educação e vive de pequenos rendimentos. Reis, educado num colégio de jesuítas, é um médico auto-exilado no Brasil desde 1919, por convicções monárquicas. Campos é engenheiro naval e latinista.
O inter-relacionamento dos três, seja na atitude ou no estilo literário, é de uma densidade e sutileza jamesianas, a exemplo de seus vários laços de parentesco com o próprio Pessoa. O Caeiro em Pessoa faz poesia por pura e inesperada inspiração. A obra de Ricardo Reis é fruto de uma deliberação abstrata, quase analítica. As afinidades com Campos são as mais nebulosas e intricadas. “É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu, menos o raciocínio e a afetividade”.
A língua de Campos é bastante parecida à de Pessoa; Caeiro escreve um português descuidado, por vezes com lapsos; Reis é um purista cujo linguajar Pessoa considera exagerado.
O labirinto é explorado na introdução de Octavio Paz a “A Centenary Pessoa” (“Um Pessoa Centenário”), uma antologia com bela produção editada por Eugênio Lisboa e L. C. Taylor. Paz vê Caeiro, Reis e Campos como “os protagonistas de um romance que Pessoa jamais escreveu”. Pessoa não é entretanto “um inventor de poetas-personagens, mas um criador de obras de poetas”, argumenta Paz. “A diferença é crucial”. As biografias imaginárias, as anedotas, o “realismo mágico” do contexto histórico-político-social em que cada máscara se desenvolve são um acompanhamento, uma elucidação para os textos. O enigma da autonomia de Reis e Campos é tal que, vez por outra, eles chegam a tratar Pessoa com ironia ou condescendência. Caeiro, por sua vez, é, como vimos, o mestre cuja brusca autoridade e salto para a vida generativa desencadeiam todo o projeto dramático. Paz distingue com acurácia estes fantasmas animados.
Caeiro é um agnóstico que deseja anular a morte por negar a consciência. Sua
postura é de um paganismo existencial. Há em seus textos e sua “persona” retoques de quietude e sagacidade orientais. Sua fraqueza, sugere Paz, é a qualidade esfumada da experiência que alega encarnar. Ele morre jovem. Como Caeiro, Campos pratica versos livres e lida de modo irreverente com o português clássico ou castiço. Ambos são pessimistas, apaixonados pela realidade concreta. Mas Caeiro é um ingênuo que cultiva a abstinência e o retraimento filosóficos, ao passo que Campos é um dândi peregrino.
De novo,é Paz quem formula de modo incisivo:”Caeiro pergunta-se : o que sou?
Campos: quem sou?”. Para Campos, essa questão é quase abafada pelo clamor da máquina, pelo bramido da nova tecnologia na fábrica e nas ruas da metrópole moderna. Partindo da premissa de que a única realidade é a sensação, Campos acabará por se perguntar se ele próprio é real (uma modulação irônica, em vista de seu primeiro e mais celebrado poema, a “Ode Triunfal”).
Ricardo Reis é o mais complexo destes disfarces. Anacoreta, ele privilegia os
gêneros neoclássicos altamente elaborados, como o epigrama, a elegia e a ode. Raríssima mescla de esteta estóico (um eco talvez de Walter Pater?), a perfeição técnica de seus poemas curtos busca a tranqüila resignação ao destino. Pessoa chama atenção para as obras não publicadas de Reis; elas incluem “Um Debate Estético entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos” e notas críticas sobre Caeiro e Campos, qualificadas por Pessoa como “modelos de precisão verbal e equívoco estético”. (Tão encantadoramente tortuosos são o dédalo e o quarto de espelhos de Pessoa que mesmo um Borges ou um Paz, ambos mestres em labirintos, parecem simples em comparação). E a respeito do titereiro ele próprio (apesar dessa comparação grosseira)?
Paz o imagina como essencialmente ausente: “Ele nunca aparecerá: não há um outro. O que aparece insinua a si próprio sua alteridade, que não tem nome, que não é dito e nossas pobres palavras invocam. Isto é poesia? Não: poesia é o que resta e nos consola, a consciência das ausências. E, mais uma vez, quase imperceptivelmente, um rumor de algo. Pessoa ou a iminência do desconhecido”.
A silhueta que Paz traça de Pessoa, sendo palavras de despedida tão sutis, correm o risco de obscurecer um fato básico. Do jogo espectral dos heterônimos emerge uma poesia com força de primeira grandeza. Pessoa é com justiça arrolado entre as 26 figuras centrais do sugestivo, embora um tanto pueril, “Cânone Ocidental” (de Harold Bloom).
O português é uma língua resistente. Suas guturais o fazem como que o membro eslavo da família das línguas românicas. Na ausência, ademais, de uma tradução adequada para, o inglês dos “Lusíadas”, de Camões, essa grande epopéia de um império trágico e conquistador, para a maioria de nós a literatura portuguesa (que inclui, naturalmente, a do Brasil) permanece estranha.
Somos por isso gratos às traduções e seleções de nosso quarteto a cargo de Keith Bosley. Primeiro, a voz de Pessoa: “Não sei quem me sonho…”; “Ditosos a quem acena/ Um lenço de despedida!” ; “Dá a surpresa de ser”. Ou o característico “O mais do que isto/ É Jesus Cristo,/ Que não sabia nada de finanças/ Nem consta que tivesse biblioteca…” Há este registro irônico e incerto, com seu constante apelo ao mar, a um Portugal quase liberto de suas amarras européias:
“Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu”.
Ouvimos a seguir a sensualidade filosófica de Caeiro:
“Não me importo com às rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de
exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior”.
Há laconismos inesquecíveis (uma distante melodia de Emily Dickinson): “Li hoje quase duas páginas/ Do livro dum poeta místico,/ E ri como quem tem chorado muito”.
Caeiro saúda o transitório. Para ele a “recordação é uma traição à Natureza”, já que ela muda constantemente. Ele ordena aos, pássaros em vôo que lhe ensinem a arte de passar sem deixar rastro. A busca da individualidade, de verdades absolutas — o modelo platônico tão peremptório na poesia ocidental — é meramente “uma doença das nossas idéias”. Suas reflexões sobre a morte e a posteridade são dotadas de um orgulho agridoce pois ele foi “gentil como o sol e a água” e, por fim, veio-lhe o “sono como a qualquer criança”.
Absolutamente diverso é Ricardo Reis: rato de biblioteca, entendido em mitologia antiga, perito em formas métricas elaboradas e estilo mandarim. De certo modo, uma versão mais austera de Swinburne e Gautier, de ouvidos atentos e imitando “O ritmo antigo que há em pés descalços,/ Esse ritmo das ninfas repetido”. Um esteta “fin de siècle” que prefere “rosas à pátria” e vê em Cristo não “mais que um deus a mais no eterno”. Todavia um poeta lírico capaz desta rara mordacidade epigramática que conhecemos também de Walter Savage Landor (talvez o verdadeiro modelo de Reis):
“Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele,
Preservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa —
O amarelo atual que as folhas vivem
E as torna diferentes”.
Campos é o retórico loquaz, o bardo à maneira clássica. É capaz porém de ridicularizar-se com ousada satisfação. Sua “Ode Triunfal” pode ser equiparada a “A Ponte”, de Hart Crane, como um dos textos-chave das paisagens industriais da modernidade. “Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hó la foule!” Como o ranzinza e fantasmagórico Pessoa deve ter refugido da robusta democracia de Campos! Como Reis, o alusivo helenista vitoriano, deve ter-se esquivado!
“Ah, e agente ordinária e suja,
que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e
amo-o!
Masturbam homens de aspecto
decente nos vãos da escada.”
“Tabacaria” consta entre os mais prestigiados poemas da língua. Não é cinismo,mas antes uma espécie de revigorante desalento que ordena à pequena garota “comer chocolates”, pois “que não há mais metafísica no mundo senão chocolates”, após o que o poeta deita o papel laminado “para o chão, como tenho deitado a vida”. E já que “toda gente sabe como as grandes constipações/ Alteram todo o sistema do universo/
Zangam-nos contra a vida,/ E fazem espirrar até à metafísica”, o poeta receita um único remédio: “Preciso de verdade e da aspirina”. Hazlitt fala com reverência de uma sensibilidade capaz de imaginar e dar articulação a um lago e a uma Cordélia. A simples amplitude de vozes e temperamentos alternados de Pessoa dificilmente é menos admirável.
Essa homenagem centenária elegantemente ilustrada oferece passagens representativas da prosa de Pessoa acrescidas de críticas, perfis e documentos. Omitido porém foi o leviatânico drama filosófico “Fausto”. Pessoa começou a trabalhar nesta suma em 1908 e — em analogia a Goethe — continuou a elaborá-lo até 1933. Há críticos, notadamente na França, que o tomam por uma obra-chave, um arquipélago ainda a ser descoberto.
- Os editores incluíram duas imaginárias entrevistas póstumas, mas o supra-sumo nessa veia parece que lhes passou despercebido: “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José Saramago, traduzido para o inglês em 1991 por Giovanni Pontiero, está entre os melhores romances da recente literatura européia. o livro fala do regresso de Ricardo Reis de seu exílio no Brasil, de Eros e fascismo em Lisboa e do encontro entre Reis e seu genitor morto. Nada mais perceptivo foi escrito sobre Pessoa e suas sombras contrastantes. Nas palavras de Fernando Pessoa:
“Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.
Eles foram e não foram”.